quinta-feira, 9 de agosto de 2012

QUANDO FOI 68? Brasil, contexto | Nordeste, engajamento e musicalidade

Aline

  A oposição ao governo de Costa e Silva, segundo presidente na linhagem militar brasileira após o golpe, aumentou expressivamente em 1968. Na medida em que as ações opositoras aconteciam, intensificava-se também a repressão policial. Em março, o estudante Edson Luís de Lima Souto foi morto durante manifestações estudantis no Rio de Janeiro – fato que desaguou numa onda de protestos, censurada com violência. A Passeata dos Cem Mil, em junho, afirmava “O povo organizado derruba a ditadura”. Em julho, atentados contra teatros e atores de esquerda. Em outubro, quase mil participantes do congresso clandestino organizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), foram presos. Operários fizeram greves em Contagem (MG) e Osasco (SP), consideradas ilegais e, portanto, reprimidas.
       Enquanto as agitações quase depuseram Charles de Gaulle na França e Lyndon Johnson desistiu da reeleição nos Estados Unidos, no Brasil as consequências foram bem distintas. A resposta oficial veio no dia 13 de dezembro: o Ato Institucional nº 5 (AI-5), aprovado numa reunião do Conselho de Segurança Nacional (com apenas um voto contra). Decretava o fim das liberdades civis e de expressão. Um desfecho autoritário para um ano em que o Brasil, assim como o mundo, desejava autonomia.
       Com o AI-5, redações dos principais veículos de comunicação foram “invadidas” por funcionários da Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal, que passaram a controlar o conteúdo a ser publicado. Teatros foram destruídos, artistas sequestrados e interrogados, compositores e escritores exilados.
       A sensação de relativa liberdade de expressão, logo após o golpe de 64, “permitiu” no cenário cultural atuações que oscilavam entre o experimentalismo e o engajamento, a participação e a alienação. Foram inclusive esses antagonismos que provocaram, por exemplo, confrontos entre artistas nacionalistas de esquerda e vanguardistas do Tropicalismo – isto é, além dos militares, existia um tipo de “patrulha ideológica” por parte da esquerda nacionalista. Em 1967, a “passeata contra a guitarra elétrica” legitimou-se como manifestação ideológica contra a Jovem Guarda. Enquanto isso, os “tropicais” eram contra o autoritarismo e a desigualdade social, mas comungavam com a ideia de internacionalização da cultura e com a busca de uma nova expressão estética, irrestrita ao discurso político.
       Geraldo Vandré, cantor e compositor, era um dos artistas que iam de encontro a esse pensamento, por não valorizar a arte que não se comprometia com mudanças políticas e sociais. Num debate ocorrido na Faculdade de Filosofia de Natal, posicionou-se contra o universalismo de Gil e Caetano, porque era criado “um estado de espírito que nós realmente não sentimos”. Vandré, inclusive, era um dos primeiros artistas que a ditadura procurava depois do AI-5. Ele havia participado do III Festival Internacional da Canção com “Pra não dizer que não falei das flores”, canção que se tornou hino contra o regime militar. O compositor foi acolhido pela viúva do escritor Guimarães Rosa, na fazenda da família no sertão mineiro, até o momento de seguir para o auto-exílio.
Há soldados armados / amados ou não / quase todos perdidos / de armas na mão / nos quartéis lhes ensinam / uma antiga lição / de morrer pela pátria / e viver sem razão.” Pra não dizer que não falei das flores, Geraldo Vandré.

       No dia 27 de dezembro foi a vez de Caetano Veloso e Gilberto Gil serem presos. O estopim para a ação foi a última edição do programa Divino, maravilhoso que foi ao ar antes do Natal. Nela, Caetano cantou “Noite feliz” com uma arma apontada para a cabeça. O programa, marcado pela irreverência – apresentando por Gal Costa, Gil e Caetano –, foi exibido durante apenas dois meses pela extinta TV Tupi. Era dirigido por Fernando Faro e Antonio Abujamra, apresentou nomes de cantores debutantes como Jards Macalé e Jorge Ben. As fitas do programa foram destruídas pelos diretores, restando apenas registros fotográficos e na memória de quem fez e assistiu. Divino, maravilhoso era a resposta tropicalista aos programas da TV Excelsior O Fino da Bossa (com Elis Regina e Jair Rodrigues) e Jovem Guarda (com Roberto Carlos, Eramos Carlos e Wanderléia).
Em pé: Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee e Gal Costa. Abaixados: Sérgio Dias e Arnaldo Baptista. No dia da estreia do programa Divino, maravilhoso (28/10/68).
O programa era marcado por atuações irreverentes que não agradavam nem um pouco aos militares.

       De volta à prisão de Gil e Caetano, durante dois meses fizeram um tour por vários quartéis, até que, após o Carnaval de 1969, passaram a viver sob o regime de “confinamento” em Salvador – tendo de se apresentar diariamente ao chefe da Polícia Militar. Em seguida, foram “convidados” a deixar o país e iniciaram o auto-exílio em Londres.
       Movimentos e consequências à parte, no cenário da época, a participação nordestina e, em especial, a pernambucana foi muito enriquecedora, ainda que seu estudo seja menos tradicional diante das demais ações culturais que permearam o Brasil de 1968 em diante.


       Quando Gil veio lançar seu primeiro LP, Louvação (1967), em Recife, acabou passando uma temporada de um mês no teatro Hermilo Borba Filho, apresentando-se junto a Geraldo Azevedo e, os que viriam a ser integrantes do Quinteto Violado, Marcelo Melo e Luciano Pimentel. Conviveu com pessoas como Jomard Muniz de Britto, Aristides Guimarães (cantor e compositor à frente da banda Laboratórios de Sons Estranhos, LSE) e outros artistas e intelectuais locais que o mostraram as músicas da região: pastoril profano, maracatu, ciranda, banda de pífano. A junção de todo esse aparato regional à produção individual de Gil, pode ser já notada no segundo LP, Gilberto Gil, do ano seguinte.
Capa do LP homônimo de Gilberto Gil, 1968.

       Acontece que essa convivência não foi por acaso. Eram pessoas daqui que movimentavam a ideia tropicalista no Nordeste. Afinal, em Recife, João Pessoa e Natal, embora poucos admitam – nem mesmo Caetano registrou em seu livro Verdade tropical –, existiu um movimento tropicalista quase que simultâneo ao mais propagado. Em julho de 68, foi lançado o Inventário do Feudalismo Cultural Nordestino, terceiro manifesto tropicalista nordestino, “mais contundente e de maior amplitude” (TELES, 2000). Assinaram o documento: de Pernambuco, Jomard Muniz de Britto, Aristide Guimarães e Celso Marconi; da Paraíba, Marcus Vinicius (pernambucano radicado lá), Carlos Aranha e Raul Córdula; do Rio Grande do Norte, Dailor Varela, Alexis Gurgel, Falves da Silva, Anchieta Fernandes e Moacyr Cirne; e, representando a Bahia, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
       Ocorreu no mesmo ano a II Feira de Música Popular do Nordeste, fundamental, inclusive, para a música pernambucana, palco de vários debates que discutiam os rumos da cultura. Conseguiu aglutinar os artistas que trabalhavam separadamente e, sobretudo, passou-se a compor mais. Inclusive pela ausência de registros, mais parece uma geração muito mais engajada do que produtora – só aparência. De todo modo, foi essa tradição de feiras e encontros que na geração seguinte, do início dos anos 70, conseguiu ainda mais fortificar as produções locais. A exemplo da I Feira Experimental de Música do Nordeste, realizada no dia 11 de novembro de 1972, no teatro de Nova Jerusalém, na qual os produtores, sem nenhuma intenção de faturar em cima do projeto, realizaram uma feira livre com entrada franca a fim de unir tudo e qualquer coisa que chegasse para subir aos palcos.
       Dessa vez, sem manifestos, a geração do desbunde pernambucano deixou um vasto legado que convivia em sintonia com a psicodelia pós-Woodstock e a geração beatnik - chegando a ser nomeada beat-psicodelia recifense. Dos tropicalistas, herdaram a necessidade de estarem antenados com o exterior, valorizando os ritmos locais. Música nordestina com linguagem rock'n'roll.
Hey Man, faixa do LP homônimo dos ex-Tamarineira Village, Ave Sangria (1972).

Produções da época. No sentido anti-horário: Satwa (1973) e Marconi Notaro no Sub Reino dos Metazoários  (1973), Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol (1975) e Flaviola e o Bando do Sol (1976).

       Eram shows no Beco do Barato, no pátio de São Pedro, no Geraldão, Olinda, Fazenda Nova, no teatro Santa Isabel. O chamado udigrudi recifense, que tinha como guru Lula Côrtes e nomes como Marconi Notaro, Zé Ramalho, Tamarineira Village (depois Ave Sangria), O Phetus, Robertinho do Recife, Flaviola. O perfil dos artistas, as atuações, o som,  o alto nível de experimentalismo e psicodelia mistificaram os personagens que faziam parte dessa cena.  O desagrado por serem tachados como contracultura, refletido na falta de patrocínio, obrigava a emigração dos músicos para a gravação de um LP. Até porque tínhamos aqui a gravadora Rozemblit (que na época já não era tão bem sucedida), mas que, ligada ao tradicional, nunca percebeu que Pernambuco sempre teve vocação para vanguarda e que rock dava dinheiro. Só mais adiante, já no final desse processo musical, foi que Lula Côrtes e Zé Ramalho gravaram o LP Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol (1976) utilizando o estúdio da Rozemblit, bancados pela produtora Abrakadabra.
       Esse cenário duvidoso, incentivado pela falta de investimentos, resultou na dispersão dos artistas. Foi uma fase de extrema riqueza experimental que acabou por desembocar num Recife "sem criatividade", por mais de uma década, quando se vê o nascimento do Manguebeat.

Trilha de Sumé, do LP Paêbirú (1975) de Lula Côrtes e Zé Ramalho.

TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Ed. 34, 2000.

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